Fonte: www.adital.com.br
Por Marcelo Barros
Poderosos de Brasília descobrem que o lixo de suas casas e escritórios não é apenas objeto de interesse por parte de gente pobre que vive da reciclagem. Em alguns casos, reciclam-se não apenas papéis e metais, mas histórias e transações, jogadas no lixo, para não ser recordadas.
Enquanto o Congresso brasileiro revê documentos mal explicados e trazidos à tona contra o seu próprio presidente, toda a sociedade passa a se preocupar mais com o lixo que produz. Nas cidades maiores, os resíduos sólidos da sociedade se constituem como uma das mais rentáveis fontes de lucro para empresas que os exploram. Milhares de pessoas empobrecidas, que antes viviam, de forma desorganizada, nos lixões da vida, agora, ou se organizam em cooperativas de reciclagem, ou são excluídos até do lixão que lhes restava para sobreviver. Para quem visita na África, cidades como Nairóbi (Quênia), o mais espantoso é ver a experiência dos mukuru em imensas lixeiras públicas como a favela de Korogocho onde moram 120 mil habitantes abandonados à própria sorte em uma área de 2 km2 de lixão. São milhares de crianças, mulheres e homens adultos que recolhem de tudo e reciclam qualquer coisa que tenham em mãos. Formam uma cooperativa na qual tudo se recicla, quase como um milagre de criatividade humana e capacidade de resistência. No Brasil, os catadores de materiais recicláveis se organizam em cooperativas e formam um grande movimento nacional. De qualquer forma, a crise ecológica que o mundo enfrenta veio revelar um problema mais profundo que não depende apenas da organização de coleta e reciclagem dos resíduos sólidos que a sociedade joga fora. Para o futuro, não basta apenas separar os diversos materiais do lixo e reciclá-lo, se se continua a consumir descontroladamente todo tipo de bugigangas para depois de descartar, de alguma forma, reaproveitar.
Lixo é resultado de um modelo de sociedade. Somente os seres humanos produzem lixo, no sentido próprio do termo, isto é, resíduos sólidos que não são reciclados pela natureza, como ocorre com os dejetos animais e as folhas secas que apodrecem para tornar a terra mais fecunda e a vida renovada. Só a sociedade dita moderna produz um tipo de lixo que não se reincorpora no ciclo da vida. Mesmo as comunidades tradicionais que já lidavam com objetos de consumo e artefatos não facilmente degradáveis não poluíam a terra com seus resíduos. O lixo começou a gerar problema quando a sociedade começou a produzir o plástico, produtos eletrônicos e seus derivados, como pilhas e baterias. Comumente, menos de um terço da humanidade compra esses produtos e dois terços os recebem em herança quando não prestam mais. Os proprietários não sabem o que fazer com eles e se tornam lixo. A ONU tem mediado acordos entre nações ricas do Norte e países pobres da África e da América Latina que ganham dinheiro para acolher navios cheios de lixo químico e quinquilharias do progresso que países da Europa não querem mais ter em seus territórios. Alguns destes produtos se reciclam, como pneus velhos. Outros simplesmente se enterram, como se a Terra fosse uma imensa lixeira. Houve até quem sugerisse fazer depósitos de lixo em naves espaciais jogadas como lixeiras no espaço sideral.
A parte mais sadia da humanidade sabe que este problema só se resolverá se for enfrentado a partir de suas raízes mais profundas.
Desde a conferência internacional sobre o ambiente em Estocolmo (1972) e, sucessivamente, no Rio de Janeiro (1992) e Nairóbi (2002), a ONU vem insistindo que, para garantir o futuro da vida no planeta Terra, os países ricos têm de rever seu estilo de vida e transformar seus hábitos de consumo, assim como toda a humanidade é chamada a viver uma relação de maior justiça e amor com a Terra, os animais e toda a natureza. Uma pesquisa da Universidade de British Columbia, no Canadá, revelou que, para garantir seu modo de viver em um planeta habitável, os cidadãos dos EUA precisariam ter um território quatro vezes maior do que têm. Conforme este estudo, publicado no Living Planet Report, seriam necessários três planetas e meio para sobreviver ao atual modelo sócio-econômico vigente e o lixo que ele acarreta.
À medida que tais informações são veiculadas e as pessoas vão percebendo as conseqüências trágicas e já vigentes do aquecimento global, conseqüência do nosso modelo de sociedade, uma consciência nova se espalha pelo mundo todo. O economista francês Serge Latouche propõe à ONU um método que corrija as distorções do atual modelo econômico. Trata-se do caminho dos 6 R: re-avaliar, re-estruturar, re-distribuir, reduzir, re-utilizar e reciclar. Alguns destes itens dizem respeito ao modelo social e econômico, enquanto outros se referem mais diretamente ao tratamento dos objetos de consumo.
Nos mais diversos países, grupos e organizações sociais organizam um amplo movimento pelo consumo crítico e por um modelo novo de economia alternativa, solidária e eticamente responsável.
Na Europa, há cidades, como Treviso e Pádua, na Itália, cujas prefeituras afirmam que de 2005 a 2007, este problema foi, de tal forma, trabalhado com a população local, que a produção de lixo diário diminuiu em 30 %. São cidades que fazem a coleta de porta em porta. As famílias ganham redução de impostos à medida que conseguem diminuir a sua cota de lixo cotidiano. Entretanto, novamente, não se diminui o lixo sem rever as compras e avaliar as necessidades comuns de consumo. Desde algum tempo, na Espanha, Itália e outros países, o supermercados deixaram de fornecer sacos plásticos. Ou o cliente traz de casa cesta ou sacolas, ou cada sacola de plástico que precisar, custa na caixa um euro (2, 66 reais). Isso evidentemente reduz substancialmente o plástico que cada dia vai para o lixo e contribui sim com a ecologia.
Grupos mais conscientes da opressão que vigora no mundo recordam que tênis de tal marca são fabricados com mão de obra infantil semi-escravizada de países do sudeste asiático e comprá-los é colaborar para que esse sistema de opressão continue. Produtos de laticínio europeus são responsáveis pela falência dos produtos similares africanos e pela fome e miséria de multidões em vários países pobres. Cada consumidor é convidado a exigir que o produto comprado seja produzido em condições de mais justiça social e cuidado com a natureza.
Grupos espirituais de todas as religiões relêem o apelo de Buda para o desapego pessoal, as palavras de Jesus Cristo que convocam para a pobreza de coração não no sentido de simplesmente não possuir nada, mas de assumir a sobriedade na vida e no consumo como caminho concreto para que outro modelo de sociedade seja possível. Em uma época como a nossa, o consumo crítico e eticamente responsável se torna requisito indispensável de conversão interior, amor ao próximo e respeito pela criação que é obra do amor divino.
Marcelo Barros é Monge beneditino, teólogo e escritor. Tem 30 livros publicados.