Fonte: Agência Carta Maior, por Flavio Aguiar
A marcha de abertura partiu da maior favela de Nairobi e culminou com o show de abertura de Martinho da Vila, interrompido, de surpresa, pelo discurso do homenageado Kenneth Kaunda, ex-presidente da Zambia que, em si, e em seu discurso, faz a ponte entre passado, presente e futuro.
Dados recentes da ONU dizem que 2.150.000 pessoas da região metropolitana de Nairobi vivem em 684 km². A favela de Kibera é a maior de todas, e foi de sua entrada que partiu, neste sábado, 20 de janeiro de 2007, a marcha de abertura do sétimo Fórum Social Mundial.
Num passo forçado, a marcha seguiu até o parque de Uhuru, que quer dizer “Liberdade”, no centro da cidade, onde houve o show e os discursos de abertura.
Passo forçado significa aquela marcha que os africanos fazem, correndo e dançando ao mesmo tempo, além de cantarem palavras de ordem. É lindo de ver, dificil de acompanhar. Mas a equipe Carta Maior comportou-se com bravura – inclusive eu. E conseguimos chegar ao parque adiante da comissão de frente.
Essa comissão de frente tinha como convidado de honra, homenageado, “the honorable Dr. Kenneth Kaunda”, ex-presidente da Zambia.
Kenneth Kaunda é destes remanescentes dos antigos movimentos de libertação nacional da África dos anos 50 e 60. E da estirpe dos Ben Bella, dos Kenyatta, dos Nkrouma, Mandela, que ele lembrou em seu discurso, ao lado de Guevara, Gahndi, Fidel, Luther King.
Kaunda falou várias vezes ao longo da marcha e da festa. Seu discurso é marcado pela presença de Deus e de princípios cristãos libertários. Seu último discurso, já no meio da tarde, foi longo demais. Alem disso, por forças das circunstâncias, interrompeu o show de Martinho da Vila, convidado especial. Foi um momento complicado: os segurancas entraram no palco, Martinho não sabia o que estva acontecendo, mas felizmente Kaunda entrou dando alguns passos de samba, o que desanuviou o ambiente.
Ainda assim, esses problemas protocolares não retiram a importância de alguns tópicos de seu discurso, estabelecendo, como é próprio do Fórum, passagens entre o passado, o presente e o futuro.
Além de lembrar os desafios do presente, a igualdade das mulheres, a luta contra a exploração do homem pelo homem, o tornar a pobreza parte do passado (“make poverty history”), a luta contra a AIDs, o crime organizado, a educação, o direitos das crianças, a luta contra a intolerância, Kaunda ressaltou que, se as lutas pela independência no passado não garantiram essas conquistas para todos, elas lembram que é possível lutar e vencer. “Nossa experiência”, disse ele, mostra que os desafios da injustiça e da exploração podem ser vencidos.
Nós somos fortes. Nós conseguimos antes, podemos conseguir agora”. A ligação com o passado não se limitou à presenca de Kaunda. À certa altura, houve um desfile emocionante de veteranos Mau-maus, das revoltas pela independência e pela terra dos anos cinqüuenta, quando o Quênia ainda estava sob dominação britânica.
Antes eram tratados como terroristas e assassinos. Hoje são reverenciados como precursores da independência, conseguida em 1963 com a liderança de Jomo Kenyatta. Os Mau-maus terminaram sendo massacrados, também pelas rivalidades internas que despertaram. Em 1957, seu lider foi enforcado como criminoso; 40% dos revoltosos tinham morrido. Naqueles rostos vincados que desfilavam, vinham marcas desta África das mil e uma histórias, em busca de um futuro – o que lhes foi negado pelo massacre. Uma frase de seu líder (cujo nome me escapa, prometo retomá-lo amanhã) estava marcada num cartaz: “é preferível morrer de pé do que sobreviver de joelhos”.
Na marcha, Nairobi afora, a presença religiosa era muito forte, sobretudo da Igreja Católica, da Batista e da Luterana, mas também de outras. Parece que tudo, nestas terras africanas, passa por alguma igreja e, assim, o discurso de Kaunda espelhava de fato o mundo que desfilava pela Nairobi empoeirada.
PS – Na crônica anterior prometi que falaria de como se entra na casa de uma família do Quênia e de como se convive com ela. Não esqueci. Fica para a próxima.