Fonte: Boletim eletrônico do IBASE, por Josinaldo Aleixo
“Da pancada do mar até a boca do sertão governa o senhor. Da boca do sertão em diante governo eu”
(Carta de Lampião ao governador de Pernambuco)
A bênção
Há algum tempo, encontrei Abençoada – ela é conhecida assim porque, sendo evangélica, chama a todos(as) Abençoado(a). Ela havia saído da cooperativa de trabalho da qual era sócia. – Mas por que criatura?
– Porque não concordei com algumas posturas autoritárias da diretoria. Eles atropelaram a assembléia geral, não chamaram os sócios para decidir sobre o valor da renovação do contrato.
– Mas não ficava mais fácil chamar a diretoria para a porrada? Poxa, sair da cooperativa? Se você estivesse trabalhando para um patrão, você ia ter que aturar a vontade do chefe sem reclamar, né? Na cooperativa, você tem a chance de influenciar as decisões. Agora vai ficar desempregada?
– Quem mandou dizerem que a cooperativa é nossa, que é autogestão? Prefiro ficar sem trabalho. Sou tão dona do meu trabalho naquela cooperativa que escolhi ficar sem ele.
Comer para fazer a revolução
Numa ocupação de sem-tetos na periferia do Rio de Janeiro, suas lideranças procuraram a assessoria da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP) da UFRJ para formarem uma cooperativa na comunidade. Dizia Luiz, uma das lideranças.
– Todo mundo aqui é ferrado, quase todo mundo está desempregado. Então, a gente tem que ver esse negócio de trabalho, senão a gente não toca o mutirão. Como é que a gente vai comprar material de construção se não tem nem para comer? De barriga vazia não dá para fazer movimento, Josi, porque “as pessoa” são que nem animal. Animal, quando está com fome, só pensa em comer. Sem trabalho não dá para se organizar, quanto mais fazer a revolução. Como a gente vai andar para as “reunião” sem força nas pernas?
Protagonismo feminino
Em Belém, quem conversava comigo revoltada da vida era Julinha, diretora de uma associação de trabalhadoras domésticas fundada em um bairro da periferia. Segundo ela, os homens se viram tentados a tomar conta da associação.
– Aí, aos poucos, os homens foram se chegando à associação e formamos um setor de construção e reforma de casas e apartamentos, tá entendendo?
– Tô sim.
– Aí, os filhos da p. começaram a brigar com a diretoria porque somos todas mulheres. Eles não queriam ser coordenados por mulheres, se sentiam humilhados, diminuídos. Uma associada me contou que o marido já não estava nem mais dormindo com ela porque ela tinha poder na associação e ele não, imagina?
– Dormindo?
– Dormindo…. fazendo aquelas coisas gostosas de casal que a gente faz à noite.
– Liga não, é que tem muito tempo que eu não faço…
Em volta, a mulherada já dava suas “gaitadas” (gargalhadas), como fala o pessoal do Pará.
– E sabe o que eles mais faziam contra nós?
– Não tenho idéia…
– Fofoca. Homem fofoqueiro é uma desgraça. Eles faziam fofoca de tudo, Josi. Aí, sabe o que a gente fez? Armou uma arapuca para eles. Na festa de natal, os homens ganharam sainha, batom e sutiã no amigo oculto… Sacaneamos muito. Homem fofoqueiro é pior do que mulher faladeira. Tem mais é que vestir sainha.
A mulherada pode ser pouco politicamente correta, mas a associação delas é fantástica.
Quando os santos participaram da assembléia
Estava no interior do Maranhão, de penetra na associação dos trabalhadores rurais de uma comunidade perto de Codó. A discussão estava acesa, havia divergência de encaminhamento das questões de comercialização. A temperatura foi subindo, subindo, muita gritaria e acusações de todo tipo. De repente, um senhor sentado na fileira da frente se inclinou e deu um salto. Quase enfartei porque ele era bem velhinho e deu um salto de bailarino quase do meu lado. A plenária ficou eletrizada, olho arregalado.
O coroa começou a cantar alto no meio do salão, dançava solto, sacudindo os braços. Seu rosto tinha uma estranha dignidade. Às vezes, ele ia quase até o chão dançando e rodando no salão. Ficou assim por uns quinze minutos. Todo mundo assistindo, em silêncio. Determinada altura, o velhinho se sacudiu, foi amparado por algumas pessoas que chamavam seu nome e sentaram-no de novo. O coordenador da mesa pegou a palavra onde havia parado, os inscritos falaram sem briga nem confusão. As propostas foram votadas, um lado ganhou apertado. Acabada a reunião, as pessoas voltaram calmamente para casa.
Se organizando na corda-bamba
Em uma cooperativa, em uma comunidade favelada carioca, o problema era simples. Rejane era coordenadora e tinha a incumbência de organizar os setores de trabalho da cooperativa, era uma excelente jovem, mas bastante autoritária, e estava se desentendendo com todas as pessoas. O detalhe era que ela era esposa do gerente do tráfico local.
Este era o ponto da pauta em uma assembléia na sede da associação de moradores do morro. De repente, entrou o marido de Rejane com um companheiro. Eles estavam sem camisa para mostrar que estavam desarmados. Deram boa noite a todos e todas, se dirigiram a Dona Jandira, presidente da associação de moradores, e a cumprimentam. A assembléia continuou.
Num dado momento, os(as) falantes se remeteram aos dois “bandidos”, abordando os conflitos de Rejane com os cooperativados(as). O marido então chamou a atenção da mulher na frente de todos(as). Tocou o telefone, Dona Jandira atendeu e, com a mão, pediu que todos(as) fizessem silêncio.
– “Não. Pode deixar, tá bom? Isso é problema da associação e da cooperativa. A gente vai resolver aqui, não se mete.”
Depois ela informou:
– “Era de Bangu 3, era o ‘Peixinho’ [dono das ‘bocas’ daquela região que se encontrava preso no presídio de Bangu 3], querendo saber o que estava acontecendo. Eu disse que era problema nosso”.
A coordenadora foi destituída de seu cargo e voltou “pra vassoura”, isto é, para um setor de trabalho na área de limpeza. Seu marido foi morto pela polícia meses depois.