Fonte: Ag6encia Carta Maior, por Verena Glass
Grandes projetos de infra-estrutura – estradas, hidrovias, hidrelétricas e linhas de transmissão – em terras indígenas ou que impactam sobre elas devem ser previamente discutidas com as comunidades, cobram organizações indígenas. Em audiência convocada pelo MPF, governo promete fazer levantamento de casos problemáticos.
A ocupação da rodovia BR 163 (que liga Cuiabá, MT, a Santarém, PA), por indígenas Caiapó, Apiaká, Panará, Terena e Kayabi no Mato Grosso compôs mais um capítulo da complexa novela sobre o desenvolvimento nacional; ou melhor, as diferentes concepções sobre a questão.
Grosso modo, o bloqueio – suspenso no dia 27 de julho – foi um protesto contra a pavimentação da BR e os prováveis impactos sobre as comunidades indígenas que vivem em sua zona de influência. Ação com demandas parecidas também fechou, em junho passado, a pequena central hidrelétrica (PCH) de Paranatinga, no Mato Grosso, que ameaça o rio Coluene (principal afluente do rio Xingu) e deve impactar várias etnias do Parque do Xingu.
Casos como este ilustram uma complicada relação entre o governo e as comunidades originárias, na qual, apesar das garantias constitucionais e de Convenções internacionais, Ministérios e órgãos federais e estaduais têm, via de regra, priorizado os aspectos econômicos e políticos dos grandes projetos infra-estruturais em detrimento da defesa dos interesses das populações indígenas, denunciam.
Os exemplos mais contundentes deste conflito de interesses certamente são a transposição do rio São Francisco, que, conforme seu projeto atual, deverá afetar diretamente cinco povos indígenas da Bahia e de Pernambuco. O outro caso é o da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, que, executada conforme os planos, atingirá os povos Assurini do Xingu, Araweté, Parakanã, Kararaô, Xikrin do Bacajá, Arara, Xipaia e Kuruaia, conforme levantamento do Instituto Socioambiental (Isa).
Ambos os projetos foram paralisados por ações do Ministério Público Federal (MPF), instituição que tem desempenhado um papel fundamental – e, por vezes, de aliado isolado – na defesa dos direitos indígenas.
Nesse sentido, a 6a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, responsável por Comunidades Indígenas e Minorias, convocou, a pedido das organizações indígenas reunidas na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), uma audiência pública com a Casa Civil, os Ministérios do Planejamento, dos Transportes, das Minas e Energia, da Justiça, do Meio Ambiente, da Integração Nacional e o Ibama para discutir normas e procedimentos de licenciamento de empreendimentos que afetam Terras Indígenas.
O ponto central da audiência, realizada nesta quinta, foi o questionamento da forma pela qual o governo vem tomando decisões sobre a criação e/ou implementação de projetos infra-estruturais sem a participação – ou com participação insuficiente ou inadequada – das populações indígenas direta ou indiretamente afetadas, principalmente nas áreas de geração de energia (hidrelétricas e PCHs), transporte (pavimentação de rodovias e criação de hidrovias) e telecomunicações (linhas de transmissão).
Pontos de vista
A consulta prévia às comunidades indígenas em casos onde empreendimentos governamentais afetam seus territórios ou direitos está prevista pela Constituição, bem como pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
Não obstante, a falta de compreensão deste direito não é incomum, como mostra o comentário da assessora do Ministério de Minas e Energia para o Meio Ambiente, Márcia Camargo, durante a audiência, segundo relatos de participantes: “vamos apagar as luzes desse auditório e de todo o Brasil, e depois vamos fazer consultas para ver se a sociedade quer mais hidrelétricas para gerar energia ou não. Se a gente fizer isso vai haver muitas mortes”, teria sido a resposta de Márcia às demandas dos indígenas.
O posicionamento de Anastácio Peralta, liderança Guarani Kaiowa do Mato Grosso do Sul, no entanto, é igualmente contundente. “Não é a falta de luz ou energia que está em discussão aqui, é a falta de sustentabilidade. Tem que haver alternativas ao modelo proposto atualmente. A natureza precisa de cuidados. Se não cuidarmos da água, dos peixes, da terra, das plantas hoje, podemos não ter mais nada amanhã. Queremos orientar o governo de que o dinheiro pode ser importante, mas a terra também é. Só se vê o lucro, não se entende que no futuro vamos precisar da natureza também. Dinheiro se fabrica; uma espécie extinta não, estará perdida para sempre. Nós indígenas pensamos na continuidade, e por isso precisamos reeducar o governo e o povo brasileiro”, explica Peralta.
Para o procurador do MPF, Eugênio Araújo, o problema concreto é que falta coerência e coordenação ao governo, no sentido de que existe uma grande fragmentação das decisões que tangem os interesses indígenas nos diversos Ministérios – Planejamento, Transportes, Minas e Energia, Meio Ambiente, Integração Nacional, etc – e órgãos governamentais. Por outro lado, muitos dos processos de consulta, quando ocorrem, são viciados, “não honestos, são realizados com lideranças erradas, não fornecem informações e explicações necessárias, enfim, os indígenas são engambelados”.
“O fato é que a maioria dos projetos de infra-estrutura são definidos politicamente e não há disposição para qualquer tipo de reversão. Por outro lado, em casos onde é preciso a participação do Congresso, os processos estagnam por conta da força da bancada anti-indígena”, explica Araújo.
“O governo discute sozinho, não tem dado respostas às nossas demandas. E quando conversa conosco, não é uma discussão, é lobby”, afirma Peralta.
Representando a Casa Civil na audiência, o assessor especial da área social, Celso Correia, pondera, sobre o “fator política”, que “o Estado tem Poder de Império e pode usá-lo para decidir o que é de interesse do Bem Comum. O que a Casa Civil quer garantir é que todos os pleitos sejam ouvidos; mas não serão obrigatoriamente atendidos”.
Correia reconhece, porém, que os povos indígenas, por seu caráter originário, precisam de tratamento diferenciado nos casos em que projetos afetam seus territórios e suas culturas. “Não podem ser simplesmente indenizados como populações não-índias, e o problema [da falta de consultas] é real. O papel da Casa Civil neste processo é articular a ação dos Ministérios e órgãos envolvidos”.
Encaminhamentos
Concretamente, em resposta à demanda apresentada na audiência, a Casa Civil deve encaminhar a realização de um levantamento de todos os projetos que afetam direta e indiretamente comunidades indígenas, para que sejam tomadas as medidas cabíveis.
Concomitantemente, Funai e organizações indígenas devem acertar os detalhes finais da composição da Comissão Nacional de Políticas Indigenistas, que, entre outros, deverá elaborar um Projeto de Lei para a criação do Conselho Nacional de Políticas Indigenistas, órgão deliberativo que, segundo o procurador Eugênio Araújo, deverá ser a solução da falta de coesão das políticas públicas para o setor e de sua aplicação pelos diferentes órgãos e ministérios.
Já as organizações concederam ao governo um prazo até abril de 2007, quando se reúnem novamente no chamado Abril Indígena em Brasília. Se até lá as demandas não tiverem sido atendidas, as estratégias de luta devem mudar radicalmente, avisam as lideranças.
Também o MPF promete continuar intervindo nos casos em que estejam ocorrendo irregularidades no encaminhamento de projetos infra-estruturais, afirma Araújo, e garante: os chamados “desenvolvimentistas”, apesar de todo o peso político, nem sempre levaram a melhor, como demonstram as demarcações das terras Indígenas Yanomami e Raposa Serra do Sol, Belo Monte e a transposição do São Francisco.