Fonte: Agência Adital (http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=22291)

Texto de Clayton Mendonça Cunha Filho

Considerações sobre a entrevista de Evo Morales ao programa Roda Viva

Exibido na segunda-feira, 24 de abril, pela TV Cultura, o programa Roda Viva com o presidente boliviano Evo Morales Ayma foi de extrema relevância e pertinência, num momento em que a mídia vem relatando seguidos conflitos de interesse entre o Estado boliviano e empresas brasileiras. Apesar de compartilharmos imensa fronteira e de nossas empresas responderem por grande parte do PIB da Bolívia, a verdade é que esse interessante país de esmagadora maioria indígena nos é um grande desconhecido e a recente eleição do líder camponês Evo, ao gerar curiosidade, também aumentou a incógnita sobre o país e seus rumos.

O que se pôde observar na entrevista foi um homem simples, inteligente, de fala clara e coerente e sempre disposto a reafirmar a soberania boliviana na decisão sobre o aproveitamento seus riquíssimos recursos naturais que, segundo ele, se converterão agora na matriz geradora de recursos financeiros para a criação de um novo modelo político e econômico voltado à resolução dos problemas sociais nacionais. Perguntado sobre que modelos o inspiravam, reconheceu a impossibilidade de tentar copiar os exemplos de outros países, mencionou admiração por Lula, mas foi ao falar do cubano Fidel Castro e do venezuelano Hugo Chávez que mais se empolgou e demonstrou segurança, citando exemplos concretos de políticas públicas socialmente progressistas realizadas pelos mesmos. Reiterou o fracasso do neoliberalismo no continente, comparando-o ao robusto crescimento econômico no ano passado dos países que mais ousaram heterodoxias.

Nas palavras de Evo, não interessam à Bolívia o livre-mercado, que aumenta as desigualdades entre os países ricos e pobres, nem o agronegócio voltado à exportação, destruidor do meio ambiente e dentro do qual reconhece a incapacidade boliviana de competir por mercados com os países ricos e já consolidados no setor. Os investimentos devem priorizar a agricultura ecológica, economicamente sustentável, para a qual, ainda segundo ele, as milenares tradições indígenas de respeito a Pachamama (Mãe Terra) contribuiriam decisivamente.

Falando convincentemente, Morales não se furtou a falar duro na defesa dos interesses e da soberania bolivianos, criticando a Petrobrás por saquear os recursos naturais do país (82% da riqueza fica com ela e apenas 18% com o país, disse ele) ou a também brasileira siderúrgica EBX, que teria se instalado do lado boliviano da fronteira sem licença ambiental de funcionamento e violando a Constituição, ao instalar-se na faixa de 50km da fronteira onde é proibida a propriedade particular de estrangeiros. Também rejeitou a estúpida War on Drugs estadunidense, pretexto para satanização dos movimentos populares ao redor do mundo, e a diplomacia da humilhação praticada pelos EUA, cancelando arbitrariamente os vistos de parlamentares ou funcionários do governo boliviano em missão oficial.

Sem dúvida, Evo Morales é uma boa notícia para os bolivianos. Suas palavras transmitem um ar de dignidade, daquela que brota espontaneamente da humildade sincera e que não precisa ser reafirmada todo o tempo, posto que é imediatamente reconhecida (que diferença do nosso presidente, sempre disposto a declarar que ainda há de nascer quem com ele debata ética ou pérolas semelhantes). Não significa, é claro, que seu governo está destinado ao sucesso. As dificuldades são enormes e ele mesmo as reconhece, venham elas das conspirações da direita golpista e separatista ou da impaciência e voluntarismo da ultra-esquerda, da falta de recursos financeiros a serem investidos pelo Estado à própria fragilidade deste, visível, sensível e palpável a qualquer um que visite a Bolívia. A sensação do lado boliviano da fronteira é mesmo a de que não há Estado, cada um por si e Deus por todos no país mais pobre e de mais baixo IDH da América do Sul.

Mas se Evo quer mesmo fazer o que diz querer, e suas palavras passam confiança neste sentido, já é um bom começo. O primeiro passo para a mudança é reconhecer sua necessidade e desejar que ela ocorra. E, por outro lado, a tensão social boliviana atual e a mobilização de seus aguerridos movimentos sociais certamente não deixarão que o presidente se esqueça de suas próprias palavras. Esperemos, pois, que o Brasil e as empresas brasileiras tenham a altivez de aceitar que talvez as regalias imorais de que gozaram por longos anos estejam próximas de chegar ao fim, e se neguem a exercer o papel de algozes imperialistas, do qual nós brasileiros sempre nos queixamos quando somos as vítimas. Uma Bolívia forte, desenvolvida e socialmente justa teria muito mais a contribuir ao Brasil e ao mundo em médio e longo prazo do que a atual fonte de recursos naturais baratos em que se converteu o país.