Fonte: Boletim Cidadania (www.cidadania.org.br)
Autora: Flávia Piovesan (professora da PUC-SP nas disciplinas de Direito Constitucional e Direitos Humanos, professora de Direitos Humanos do Programa de Pós-Graduação da PUC-SP e do Programa de Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento na Universidade Pablo Olavide (Espanha), membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e procuradora do Estado de São Paulo.)
No Brasil, a violência contra a mulher segue impune. Só 2% dos acusados em casos de agressão são condenados. De cada cem brasileiras assassinadas, 70 o são no âmbito de suas relações domésticas. E o país segue sem uma legislação específica para esse tipo de crime. Estudo recente realizado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo indica que apenas 10% das vítimas de violência sexual prestam queixa à polícia. Aponta que este reduzido universo revela, de um lado, o desconhecimento de delegacias especializadas e, por outro, o temor de humilhação e maus-tratos.
Diversamente de dezessete países da América Latina, o Brasil ainda não dispõe de legislação específica a respeito da violência contra a mulher. Aplica-se a chamada Lei 9099/95, que instituiu os Juizados Especiais Criminais (JECrim) para tratar especificamente das infrações penais de menor potencial ofensivo, ou seja, aquelas consideradas de menor gravidade, cuja pena máxima prevista em lei não seja superior a um ano. Contudo tal resposta tem se mostrado absolutamente insatisfatória, a começar pela equivocada noção de que a violência contra a mulher poderia ser concebida como infração penal de menor potencial ofensivo e não como grave violação a direitos humanos. Pesquisas demonstram o quanto a aplicação da Lei 9099/95 para os casos de violência contra a mulher implica a naturalização e a legitimação deste padrão de violência, reforçando a hierarquia entre os gêneros.
O grau de ineficácia da referida lei revela o paradoxo do Estado romper com a clássica dicotomia público-privado, de forma a dar visibilidade a violações que ocorrem no domínio privado, para, então, devolvê-las a este mesmo domínio, sob o manto da banalização, em que o agressor é condenado a pagar à vítima uma cesta básica ou meio fogão ou meia geladeira…Os casos de violência contra a mulher ora são vistos como mera “querela doméstica”, ora como reflexo de ato de “vingança ou implicância da vítima”, ora decorrentes da culpabilidade da própria vítima, no perverso jogo de que a mulher teria merecido, por seu comportamento, a resposta violenta. Isto culmina com a conseqüente falta de credibilidade no aparato da justiça. No Brasil, apenas 2% dos acusados em casos de violência contra a mulher são condenados.
No campo jurídico a omissão do Estado Brasileiro afronta a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – a “Convenção de Belém do Pará” – ratificada pelo Brasil em 1995. Esta Convenção reconhece a violência contra a mulher como um fenômeno generalizado, que alcança, sem distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição, um elevado número de mulheres. Afirma que esta violência constitui grave violação aos direitos humanos, constituindo manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens.
Define ainda a violência contra a mulher como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico `a mulher, tanto na esfera pública, como na privada”. A violência baseada no gênero ocorre quando um ato é dirigido contra uma mulher porque é mulher ou quando atos afetam as mulheres de forma desproporcional. Segundo investigação feita pela Human Rights Watch (“Injustiça Criminal x Violência contra a Mulher no Brasil”), de cada 100 mulheres brasileiras assassinadas, 70 o são no âmbito de suas relações domésticas; de acordo com pesquisa realizada pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (“Primavera já Partiu”), 66,3% dos acusados em homicídios contra mulheres são seus parceiros; dados da ONU demonstram que a violência doméstica é a principal causa de lesões em mulheres entre 15 e 44 anos no mundo, sendo que no Brasil uma a cada quatro mulheres já foi vítima de violência doméstica. A violência doméstica compromete 14,6% do Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina e 10,5% do PIB do Brasil.
Consagra a Convenção de Belém do Pará deveres aos Estados-partes, para que adotem políticas públicas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. Com base nesta Convenção, em 2001 o Estado Brasileiro foi condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos por negligência e omissão em relação à violência doméstica. A Comissão Interamericana determinou ao Estado brasileiro, dentre outras medidas, “prosseguir e intensificar o processo de reforma, a fim de romper com a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra as mulheres no Brasil” (Caso Maria da Penha, Informe N. 54/01, de 16 de abril de 2001).
No final de 2004, o Poder Executivo finalmente encaminhou ao Congresso Nacional o projeto de lei 4559/2004, com a finalidade de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Ações estatais são urgentes e necessárias para o enfrentamento da violência que acomete milhares de mulheres no Brasil. É dever do Estado brasileiro implementar políticas públicas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, em consonância com os parâmetros internacionais e constitucionais, rompendo com o perverso ciclo de violência que, banalizado e legitimado, subtrai a vida de metade da população brasileira.