Autor: ALAN INFANTE, da PrimaPagina

Nós ouvimos falar de trabalho escravo, esses números nos assustam, mas nada é tão impressionante como ver isso acontecendo na sua frente. Certa vez, acompanhei uma missão junto com o Ministério Público, no Mato Grosso do Sul, e me chocou ver crianças descalças e sem camisa trabalhando no frio, correndo entre os tocos de árvores da clareira onde foi montado o acampamento em que viviam”. A narração crua do advogado dominicano Christian Ramos Veloz, especialista principal em normas internacionais do trabalho da OIT (Organização Internacional do Trabalho), causou mais desconforto do que os números e dados projetados no painel: 12,3 milhões de pessoas no mundo são vítimas de trabalho forçado.

Em sua participação na Conferência Internacional 2005 – Empresas e Responsabilidade Social, realizada pelo Instituto Ethos e pelo PNUD, Veloz foi contundente ao afirmar que “não existe nenhum país no mundo onde esta prática tenha sido totalmente eliminada”. Há 18 anos na OIT, o ex-diretor-adjunto da organização no Brasil aponta o tráfico sexual como o “grande problema atual” e ressalta quatro “grandes exceções” da convenção que prevê a erradicação do trabalho escravo. “Nas Américas, Canadá e Estados Unidos não ratificaram; na Ásia, China e Índia”, diz.

Antes de terminar sua apresentação, Veloz ainda contou que, “certa vez, em um país na América Central, fui convidado por uma ministra do Trabalho para jantar em sua casa. Quando sentamos à mesa, crianças de 7 ou 8 anos vieram nos servir o jantar. Perguntei quem eram aquelas crianças e a ministra respondeu com a maior naturalidade: “a família não tinha condições de cuidar e nós ficamos com elas, elas vivem conosco”. Aquela mulher não tinha consciência da gravidade do que estava fazendo, ela considerava normal”. Um grito vindo do meio da platéia com a pergunta “que país”? obteve um sorriso como resposta.

Após a palestra, Veloz conversou com a PrimaPagina. Destacou o Brasil como exemplo no combate ao trabalho escravo e afirmou que a crescente informalidade no mercado de trabalho mundial já está no foco da OIT. Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

O sr. acha que o Brasil tem feito o suficiente para erradicar o trabalho escravo?

O Brasil tem dado passos muito importantes no combate ao trabalho escravo. Em 1995, reconheceu internacionalmente que existia trabalho escravo e isso está progredindo rapidamente. O Brasil é citado no relatório global sobre erradicação do trabalho escravo da OIT, publicado em maio, como um país que tem dado passos exemplares no combate ao trabalho escravo.

O Brasil vive uma tendência crescente de informalidade. Tem sido comum, por exemplo, que as empresas demitam trabalhadores formais para, posteriormente, recontratá-los como prestadores de serviço. Como a OIT vê isso?

O tema da Conferência Internacional do Trabalho 2007 tratará do tema da subcontratação e da tercerização. Esse não é só um problema do Brasil, é um problema mundial. Hoje em dia, na América Central, por exemplo, existem grandes companhias bananeiras que demitem os funcionários, dão sugestões para que eles constituam cooperativas e os recontratam. Realmente isso é uma desproteção e uma forma de evitar a aplicação da legislação trabalhista de forma normal e legítima. Esse não é um problema apenas do Brasil, mas sim um problema mundial, lamentavelmente.

Tem sido muito adiada a reforma trabalhista aqui no Brasil. Alguns setores da sociedade defendem a flexibilização das leis. Como a OIT se posiciona frente a isso?

A OIT não se posiciona porque são apenas projetos. Eu gostaria de lembrar que a OIT é uma organização tripartite, onde participam governos, trabalhadores e empregadores. O governo brasileiro é membro permanente da OIT. Na parte trabalhista, os trabalhadores têm representação quase permanente e, quanto aos empregadores, posso falar que já tem 20 anos consecutivos que eles [brasileiros] são eleitos para a OIT. Então, a presença do Brasil é muito forte e eu tenho certeza de que, quando o Brasil precisar de algum comentário dos órgãos de controle da OIT, o solicitará.

Uma das grandes ambições do governo Lula é conseguir uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU. Pelo que o sr. afirmou, pelo menos no que diz respeito às leis internacionais de trabalho, o Brasil tem um peso grande.

O Brasil é membro fundador da Organização Internacional do Trabalho. Participou na construção dessa organização, na redação da constituição da OIT. É muito interessante que, quando se firma um tratado de paz que dá lugar à criação da OIT, o Tratado de Versalhes, o presidente da delegação brasileira era um delegado que foi depois o presidente [da República] Epitácio Pessoa. Falo isso porque ele foi notificado de que ganhou a Presidência da República quando estava lá. Então, a OIT e o Brasil têm uma relação de 86 anos que tem sido muito frutífera e nós esperamos que continue dessa maneira.

A China tem sido acusada de crescer muito às custas do trabalho precário, com desrespeito às leis trabalhistas internacionais, e até mesmo do trabalho escravo. A OMC (Organização Mundial do Comércio) freqüentemente adota sanções contra práticas como o dumping e os subsídios. O sr. acha que a organização poderia fazer algo semelhante para combater o trabalho escravo?

A China tem sérios problemas com condições de trabalho que, dentro das convenções da OIT, poderiam ser classificadas como trabalho escravo. Mas só se pode fazer o monitoramento internacional dos países que ratificam convenções. Trata-se de uma supervisão feita por um órgão independente, que se chama Comissão de Peritos na Aplicação de Convenções e Recomendações. Mas a China especificamente não ratificou a convenção 29, sobre a erradicação do trabalho forçado, nem a convenção 105, sobre a abolição efetiva do trabalho escravo. A supervisão da OIT, portanto, não pode chegar a um país que não tenha ratificado seus tratados internacionais.

Mas, no que diz respeito ao comércio, o sr. acha que algum tipo de sanção – como por exemplo o próprio pacto nacional contra o trabalho escravo, no qual as empresas se comprometem a não comprar insumos produzidos com o uso de trabalho escravo – no âmbito mundial seria viável?

É interessante porque, mesmo sem a China ter ratificado essas convenções, ela participa de cerca de dez programas mundiais da OIT de combate ao trabalho escravo, junto com a Indonésia, Hong Kong, Filipinas.