Fonte: Folha de São Paulo, 19 de maio de 2005

Autor: Oded Grajew (empresário, membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social)

Quando a Lei Áurea foi proclamada, em maio de 1888, o que se fez na verdade foi reconhecer um fato consumado: o movimento abolicionista havia cercado a senzala e subtraíra de forma irreversível a legitimidade da produção baseada no trabalho escravo. Num país de urbanização incipiente, mas fermentada por ideais republicanos em expansão, não havia mais espaço para concepções seletivas de humanidade.

No Brasil, por incrível que pareça, até hoje há variadas formas e práticas de trabalho escravo. O conceito de trabalho escravo adotado pela OIT é o seguinte: toda forma de trabalho escravo é trabalho degradante, mas o recíproco nem sempre é verdadeiro. O que diferencia um conceito do outro é a liberdade. Quando falamos de trabalho escravo, falamos de um crime que cerceia a liberdade dos trabalhadores. Essa falta de liberdade se dá por meio de quatro fatores: apreensão de documentos, presença de guardas armados e "gatos" de comportamento ameaçador, dívidas ilegalmente impostas ou em razão das características geográficas do local, que impedem a fuga.

Entre 1995 e 2003 foram libertados 10.776 trabalhadores escravos, e nos anos 2003 e 2004, 7.169 trabalhadores ganharam a liberdade. Estima-se que ainda existam entre 25 mil e 40 mil escravos no território nacional.

A partir de novembro de 2003 começou a ser publicada pelo governo brasileiro a "lista suja", contendo o nome de empresas que se utilizavam de trabalho escravo e que, a partir de então, estavam proibidas de receber recursos governamentais. Essa lista está disponível no site www.mte.gov.br/Noticias/download/ListaEscravo.pdf e contém atualmente 163 empresas.

Um mapeamento minucioso da cadeia de produção dessas empresas foi providenciado pelo Instituto Ethos, mais a OIT e a ONG Repórter Brasil. Graças a esse rastreamento foi possível identificar o caminho dos produtos que são contaminados pelo trabalho escravo. As empresas e setores que são a ponta final dessas cadeias de produção foram contatadas e, ao tomarem conhecimento da pesquisa, dispuseram-se imediatamente a participar do pacto pela erradicação do trabalho escravo no Brasil. Participam dessa iniciativa empresas nacionais e multinacionais de áreas diversas, como o setor de supermercados, combustíveis, alimentos, têxtil, açúcar e álcool, siderúrgico e financeiro, entre outros. O novo pacto será lançado hoje, em Brasília, na Procuradoria Geral da República, e anunciado para novas adesões na reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.

Por esse pacto, as empresas e entidades se comprometem a eliminar de sua lista de fornecedores e de sua cadeia de produção as empresas que estejam na "lista suja" do trabalho escravo. Os bancos se comprometem a não disponibilizar recursos para essas empresas.

Os signatários do pacto se comprometem também a agir na cadeia produtiva, procurando regularizar e formalizar as relações de emprego, cumprir todas as obrigações trabalhistas e previdenciárias e empreender ações preventivas referentes à saúde e à segurança dos trabalhadores. As ações serão monitoradas e seus resultados serão tornados públicos. A experiência será sistematizada e divulgada de forma a promover a multiplicação de ações que possam contribuir para o fim de práticas escravagistas e, ao mesmo tempo, reduzir todas as formas de trabalho degradante no Brasil e em outros países.

Anualmente haverá uma avaliação pública dos resultados da implementação das políticas e ações previstas no pacto. Em agosto de 2004, siderúrgicas do Pará e Maranhão, articuladas pelo Instituto Ethos, assinaram um compromisso de combate ao trabalho escravo em sua cadeia produtiva, especialmente na produção de carvão vegetal. Entre as medidas implementadas estão o monitoramento das carvoarias, a definição das metas para regularizar as relações de trabalho e a imposição de restrições comerciais a empresas que utilizam mão-de-obra escrava. Os resultados até agora alcançados demonstram que esse tipo de concertação resulta em melhorias consideráveis nas condições de trabalho ao longo de toda a cadeia produtiva e deixam vislumbrar o imenso resultado positivo que pode ser alcançado pelo grande pacto nacional.

A partir de agora, as empresas que utilizarem trabalho escravo sabem que terão cortadas todas as linhas de financiamento e do escoamento de seus produtos. Isso significa, na prática, a total inviabilidade de qualquer empreendimento no Brasil que esteja utilizando o trabalho escravo. O novo pacto abolicionista permitirá que as empresas exerçam sua influência nuclear na economia estimulando cadeias e parcerias a promoverem a justiça social diretamente no processo produtivo, e não depois dele, como medida compensatória.

Ao adotar a responsabilidade social na sua gestão, as empresas contribuem de forma concreta e impactante para um Brasil mais justo e para a promoção do desenvolvimento sustentável.